terça-feira, 17 de março de 2015

... Carla Matilde... a enfermeira de urgência...

Muitas são as notícias que nos invadem sobre o desgaste de trabalho na área da Saúde.
Sem falar em doenças, nem reforçar as feridas abertas pelos media, sentamo-nos junto ao mar, numa conversa sobre paixão e dedicação, numa área em fase de exportação.
Connosco e consigo… Carla Matilde, a enfermeira e a pessoa, em simultâneo…
 
 
Enfermagem, porquê?
 
Enfermagem surgiu por acaso. Desde miúda que queria ser veterinária, mas como não tinha possibilidades económicas para ir estudar para fora (na altura o local mais perto onde havia o curso homologado era em Vila Real), comecei a ver outras possibilidades. E enfermagem foi-se afigurando um curso interessante e, ainda, com saída profissional. Contribuiu também para esta opção o facto de ter estado internada por uma cirurgia ao joelho, e lembro-me de ter falado com a minha mãe “Quero isto… ser enfermeira, cuidar dos outros”. E cá estou J Gosto muito daquilo que faço!
Há quantos anos trabalhas nesta área e o que mais gostas no exercício da tua profissão?
 
Trabalho nesta área há 10 anos. O que mais gosto é de poder ajudar os outros. Cuidar de alguém, poder estar ao seu lado, por vezes, nas necessidades humanas básicas, é algo que é muito nobre na minha profissão, e muito gratificante também.
O Serviço de Urgência é como nas séries e nos filmes? J Fala-nos de semelhanças e diferenças que possam existir…
Esta questão faz-me rir… Há cada “gaffe” nos filmes, no que toca a procedimentos, manuseio de material, descrição de quadros clínicos, entre outros. Às vezes, dá vontade de dizer aos produtores para, antes da realização do filme, se informarem como as técnicas realmente são; ou como se usa determinado material, porque para quem é da área, vêem-se coisas aberrantes, que se fossem feitas na realidade poderiam causar danos muito graves. A realidade não é como nos filmes, pelo menos naqueles que estou habituada a ver. Quando vemos séries, por exemplo, há aquele retrato da entrada na urgência com imensa gente à volta da maca, ordens a serem debitadas, a família aos gritos cá fora; e depois dessa “tempestade”, o doente aparece num quarto todo bonito, rodeado de todos os que lhe são próximos, e nem sempre é assim na realidade. 
 
Tens doentes que te marcaram?
 
Sem dúvida! Por questões de sigilo e privacidade, não vou descrever as situações, mas tive doentes que acho que nunca hei-de esquecer. Passo a citar um, no meu 1º estágio hospitalar, tinha um doente atribuído que deveria acompanhar desde a admissão até à alta; e o senhor “E” faleceu durante o estágio. Lembro-me tão bem de tudo, como se tivesse ocorrido na semana passada.
Não só coisas tristes. Há doentes muito castiços e com peripécias engraçadas que também não esqueço.
Tive um episódio em que um bêbado cantou uma serenata a mim e à colega com quem estava, tocando uma guitarra imaginária e tentando manter o equilíbrio numa pose trovadoresca de joelho no chão. Era tão engraçado o homem, no jeito de falar, nos modos exageradamente educados que usava, até a roupa!
Outra altura, estava eu na triagem e uma bêbada (também!) veio sentar-se a pedir-me emprego “oh menina, eu faço de tudo: arranjo unhas, sei varrer, sei tirar o lixo… não quer falar com o seu patrãozinho?” ;)
Podia sentar-me aqui uma tarde inteira e tinha sempre histórias ;)
 
E familiares de doentes?...  Por vezes, não é muito fácil lidar com os mesmos… como geres essas situações menos agradáveis?
 
     É verdade, nem sempre é fácil lidar com os familiares / acompanhantes dos doentes. No meu serviço, em particular, pela elevada afluência, pela falta de espaço adequado para tratar dos doentes e garantir a sua privacidade, pelo elevado grau de stress e exigência a que os profissionais estão sujeitos… Nem sempre consigo dar uma informação em tempo útil, ou falar com um familiar quando solicitada e, por vezes, isso não é bem aceite do outro lado. Chega a ser preciso algum “jogo de cintura” com algumas pessoas.
 
Como é que um profissional de saúde lida com a morte de um doente? A pessoa, por trás do profissional, lida melhor com a morte, em geral, mesmo na sua vida privada?
     Confesso que nem sempre lido bem com a morte. Há situações que não me custam tanto (espero não ser mal interpretada)…por exemplo idosos num estadio terminal, em que a morte é resultado da velhice, em que já não há mais nada para oferecer que lhes possa garantir qualidade de vida…a morte é um processo natural. Encaro melhor neste tipo de situações.
Já quando falece alguém jovem, ou alguém vítima de um acidente grave em que fizemos tudo e não conseguimos, ou alguma doença incurável que provoca sofrimento (estou a dar exemplos), tenho alguma dificuldade em digerir o momento. E então, se tiver que ser eu a tratar do corpo, fico abalada. Ao longo dos anos, vai-se aprendendo a gerir isto, mas não é fácil; e em especial, quando temos que encarar a família ou consolá-la perante a perda, é emocionalmente desgastante.
     Na vida privada, é ainda pior lidar com a morte, porque perdemos os “nossos”, sejam eles familiares, amigos, conhecidos… há que encarar e lidar com isso, faz parte da nossa jornada, não é verdade?
 
Como equilibras a tua vida profissional com a pessoal, sendo que, os horários desta área não são propriamente de segunda a sexta, das 9h às 18h?
 
         Não é por acaso que a enfermagem é das áreas profissionais (a par com outras, sujeitas a trabalho rotativo por turnos) onde há maior taxa de divórcios e de síndromes depressivos. Por vezes, não há vida social e mesmo pessoal, tem alturas que é difícil. Dormimos quando os outros estão acordados, nas saídas de noite andamos rabujentos, amuados, e quem não é da área nem sempre compreende. Temos um aniversário ou um evento familiar e não vamos porque estamos a trabalhar (e no Natal? Custa tanto…). Tenho este tipo de conversas com outros colegas e as opiniões são semelhantes. Tento ter um mínimo de folgas por mês, mas por vezes isso implica uma maratona de trabalho para as ter; e tento aproveitar o tempo livre da melhor forma.
 
E, por falar em vida privada… “há uma linha que separa” a vida do hospital da tua vida?
 
         Às vezes é difícil “desligar” quando saio do hospital. Venho para casa agitada, chateada por uma ou outra situação… e é engraçado, que quando saio com amigos ou colegas enfermeiros, num momento ou outro acabámos por falar em trabalho, seja da situação atual da profissão, seja de peripécias, do serviço em si. Portanto, a tal “linha que separa”, nem sempre separa ;)
 
Como ocupas os teus tempos livres?
 
     Gostava de os ocupar mais ;) ou melhor, de ter mais tempo livre! Gosto de ler, passear, estar com as pessoas de quem gosto, estar de “papo para o ar” sem fazer nenhum, depende do meu estado de espírito no momento.
 
 
O que mais gostas no Serviço de Urgência?
 
     O não haver rotina! Já passei pelo internamento e aí há determinadas rotinas de trabalho consoante o turno. Na urgência, entro ao serviço e trato do que aparece conforme a área em que estiver alocada. Há situações similares diariamente, mas cada doente é diferente.
 
Tens algum sonho nesta área, para lá do Hospital? Gostavas de dar azo a outros projetos na área da saúde? Se sim, quais…
 
         Sinceramente, não. E digo-o com tristeza. Ando um pouco desiludida com a forma como a enfermagem tem vindo a ser tratada pelos nossos governantes e pela forma como os enfermeiros são tratados nas instituições. Atenção, que só falo da realidade que conheço… Gostava de voltar a estudar, mas depois olho para os colegas que se especializaram ou que tentaram outro tipo de projetos dentro da instituição, e não há qualquer reconhecimento, incentivo (e não falo a nível monetário)…
Mais depressa me envolvo num projeto numa área fora da saúde do que ligada à mesma…
 
Qual o maior desafio que tiveste até hoje?
 
Já tive alguns… doentes críticos com os quais lidei na sala de emergência, comunicar uma má notícia, entre outros…
 
Como é que encaras medicinas complementares/ alternativas como a tradicional chinesa?
Não lhes chamo medicinas alternativas, mas sim complementares, pois acho que tanto a medicina oriental como a ocidental podem agir em sinergia de forma a dar o melhor ao doente. Os orientais têm algo que eu admiro que é o olhar o doente e não a doença, e olhar a pessoa como um todo. Na medicina ocidental há o cardiologista do coração, o nefrologista dos rins, etc; e não podemos tratar um órgão / doença isoladamente, pois faz parte de um todo que é o corpo. E se somarmos a isso a parte emocional do doente, a sua cultura, então é que não podemos mesmo ver a doença isolada. No meu entender, só há benefício quando ambas as medicinas são usadas em prol do doente.
 
O que te faz ser feliz?
Coisas simples… um dia de sol, os meus gatinhos, comer uma boa refeição na companhia de amigos / família, o meu afilhado, tomar um café a ver o mar, chegar a casa depois de um dia de chuva e vestir um pijama quentinho, estar à lareira… são pequenas grandes coisas que trazem momentos de felicidade.
 
 
 
E foi com sol que continuámos a conversar, entre o embalo da tarde e da noite…
Obrigada, Carla… garantidamente, muitos serão os leitores e profissionais da área que se irão rever nestas palavras….
 
 
Inês Monteiro
 
 

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